A Dramaturgia é a composição de um conjunto de imagens e estímulos visuais que representa, significa, ressignifica ou traduz em cena um acontecimento ou história. Como em toda Arte, na Dramaturgia existem diversos processos de desenvolvimento, que possuem características específicas e com diferentes pontos de partida, dos mais convencionais – como um texto, um roteiro, um storyboard – até os mais contemporâneos – como a partir do improviso e da prática de experimentações, por exemplo. Não há, portanto, uma fórmula: nem mesmo para uma linguagem específica como o Teatro de Sombras, que pode partir tanto do olhar simbólico e semiótico das imagens formadas por sua matéria prima, quanto da própria experimentação do uso de suas ferramentas.
Lucas Rodrigues
Aqui, alguns dos mais destacados sombristas brasileiros em atividade tecem reflexões breves sobre as muitas, ricas e plurais Dramaturgias do Teatro de Sombras.
ALEXANDRE FÁVERO
Cia Teatro Lumbra
A criatividade com as sombras escapa de padrões, sustentando-se na necessidade de organizar a narrativa diante de sua complexidade fenomenológica, potencialidade artística e inventividade autoral. No final de um processo, os resultados vivenciados são feitos por descaminhos que revelam, mais ou menos, a dramaturgia descoberta. Naturalmente, o nosso jeito brasileiro, com todo o cabedal de conhecimentos disruptivos e recursos disponíveis, forma o eixo e o vórtice das montagens, em que a inspiração é uma força espiral e centrífuga, arremessando a lógica para fora do centro, em processos únicos e irreproduzíveis. A sombra está por acontecer, em contextos culturais privilegiados deste país plural.
SOLEDAD GARCIA e THIAGO BRESANI
Cia Lumiato Teatro de Formas Animadas
A história de cada um de nós, artistas-criadores, colonizadoras-colonizadas, migrantes do mundo, inseridos numa sociedade patriarcal capitalista, nos leva a fazer as primeiras perguntas, conduzindo as incertezas que temos no início de um novo trabalho. No processo de transformação destes questionamentos em cenas, as referências são nosso ponto de partida: Cinema, Fotografia, Pintura, Literatura. Só depois de nos embeber de todas estas referências, começamos a escrever, pensando as cenas para serem transmitidas pelas imagens e ações. Cada um dos elementos que compõem a cena tem uma função, transmite um significado e se complementa com outros, dando sentido à obra como um todo.
GILSON MOTTA
Coletivo Sombreiro Andante
A ideia da escrita cênica como poesia no espaço parece-me ser mais apropriada para se pensar a dramaturgia do Teatro de Sombras, por dizer respeito ao modo como os elementos cênicos são combinados, numa tessitura visual. Tal ideia afina-se com a visão de Ana Maria Amaral sobre a dramaturgia para o Teatro de Animação, na qual se valoriza os gestos, os movimentos, os momentos de não-ação, as pausas e os momentos de silêncio. Incluo, aqui, os jogos entre a luz e a escuridão. A experiência da criação nos mostra que o jogo entre sombristas-luz-escuridão-objetos-silhuetas-superfície é a base de toda a escrita cênica. O fundamental é pensar como esse jogo propicia a criação de uma poética das sombras.
LUIZ ANDRÉ CHERUBINIi
Grupo Sobrevento
Para o Sobrevento, a título de provocação e na falta de maiores considerações, o Teatro de Sombra pode ser dividido em duas linhas principais: o “Teatro de Silhuetas” e o “Teatro de Luz”. A primeira abordagem aproxima a nossa Arte do Teatro de Bonecos, explorando, com particular ênfase, a confecção e a manipulação. A segunda aproxima-a do Cinema, enfatizando os efeitos e a narrativa guiada pelo resultado das fontes de luz sobre anteparos e suportes. Às vezes, associa-se o “Teatro de Silhuetas” a formas tradicionais e o “de Luz” a formas contemporâneas, o que termina por não ser muito correto ou justo: as fontes de luz só recentemente passaram a ter variedade e a Arte é forçosamente dinâmica.
DARIO UZAM
Cia. Articularte
A Cia. Articularte segue alguns princípios teóricos de planejamento, agregados a formas de sentimento e imaginário mirando um universo de ações próximo ao do público infantojuvenil. Após obtermos clareza na estrutura do roteiro e dos personagens, construímos sequências, pinçando teorias equilibradas com práticas, como o cozimento de um alimento que vai aos poucos recebendo ingredientes e chamas indizíveis. E, assim, vamos reescrevendo, de forma pragmática, outro roteiro dramatúrgico invisível e imaginário, que necessita se distanciar das Letras e ficar mais próximo de respiros teatrais – nunca tão claros, porque são exercícios embrionários que nascem de dentro para fora ou vice-versa.
JULIANA GRAZIELA ROCHA DE OLIVEIRA
Grupo Penumbra
A Dramaturgia dentro do Teatro de Sombras me parece como o Universo, que conecta as forças de seus agentes: as histórias, as ideias, os temas, as silhuetas, os objetos, as fontes luminosas, as cores, as imagens, os anteparos, os sons, os silêncios, as distâncias, o escuro, a luz, as sombras e os sombristas. É a Ciência na Arte e a Arte na Ciência. E, sendo imensidão, sempre está no estudo do passado, experiências do presente e infinitas possibilidades do futuro. Trata-se de uma linguagem investigadora, empírica e de experimentação: a ideia pode surgir de seus próprios agentes, nos estudos, brincadeiras e práticas.
VALMOR NÍNI BELTRAME
A dramaturgia no Teatro de Sombras ainda é objeto de especulações, dada a complexidade para a sua realização. Um dos desafios é perceber quando a sombra deixa de ser ilustrativa e passa a ser parte contributiva da encenação. Uma bela imagem tem um tempo de vida útil curto no espetáculo. Sempre surgem indagações: a dramaturgia no Teatro de Sombra se constrói como texto dramático fundado no texto escrito? Em que medida os elementos constitutivos dessa Arte são definidores da dramaturgia? Quando prescindir da palavra e ficar com a imagem? Quando usar a sombra corporal? Existem objetos que melhor se prestam à produção de imagens? O importante é pesquisar as possibilidades expressivas da sombra.
SILVANA MARCONDES
Cia Pavio de Abajour
Nos espetáculos e vídeos criados pela Cia Pavio de Abajour, a sombra é o mote central. No desenvolvimento destas criações, acreditamos ter diversas dramaturgias: a da luz e da sombra, a imagética, a textual, a das visualidades e a sonora. A dramaturgia textual surge com a pesquisa e o roteiro e ganha texto em algumas criações. A linha estética que seguirá as silhuetas – coloridas ou sem cor –, e o traço dos personagens e cenários criam a dramaturgia imagética que, aliada às luzes, forma o retrato da cena. O espaço cênico, o suporte sobre o qual a sombra incidirá e os figurinos fazem parte das visualidades. Essencial também é a sonoridade, que cria climas e acentua momentos, formando uma paisagem sonora.
FABIANA LAZZARI DE OLIVEIRA
entreAberta Cia Teatral
No Teatro de Sombras contemporâneo, não temos uma forma codificada como nos tradicionais: não temos um determinado repertório de histórias para narrar como no Teatro de Sombras chinês, nem formas próprias e fixas para operar os seus elementos, como no javanês. A dramaturgia encontra-se em função de um teatro no qual, algumas vezes, a imagem impera e estabelece um modelo que não reside na palavra. A escrita cênica está a serviço da sombra. Estudamos os elementos imbricados na encenação, desde a iluminação, a cenografia, o espaço, as personagens, a plasticidade das figuras, a música, os movimentos, as pausas, até a forma de atuação da atriz que, em conjunto com tais elementos, forma a dramaturgia da encenação.
LUCAS RODRIGUES
Fios de Sombra
Como iluminador e encenador, encontrei no Teatro a potência do uso da luz como fio condutor de uma narrativa dramatúrgica. No Teatro de Sombras, isso se reafirmou, ainda mais, uma vez que a luz é a própria matéria-prima dessa Arte. A luz revela, transforma, sugere e recria o que vemos a partir daquilo que é ou não é, de fato. Nesse contexto, a luz se faz a verdadeira protagonista dessa linguagem, ainda que não se baste nela. As imagens e estímulos visuais, quando bem organizados e somados também a outras ferramentas – como as sonoridades, os tempos, as transições –, provocam e despertam, no espectador, a imaginação e a capacidade de completar, com sua própria capacidade lúdica, a narrativa proposta.
Foto: Paloma Faria Quintas
Foto: Paloma Faria Quintas
MARCELLO ANDRADE DOS SANTOS
Companhia Karagozwk
Dramaturgia é a arte e a habilidade de dosar os movimentos, ações, intensidades, sons e tudo o que envolve a cena que se desenrola. É um mapa do que será teatralmente construído. É cada segundo, cada palavra que se transforma em imagem, unindo tecnologia e emoções, buscando possibilitar que a viagem do público durante o espetáculo seja o mais crível possível. Isto faz parte do trabalho do dramaturgo das imagens e das sombras – um desenhista, arquiteto de sentimentos, contador de coisas da vida.
SÍLVIA GODOY E RONALDO ROBLES
Cia Quase Cinema
Vida e Arte são manifestações que nunca se separam na jornada que escolhemos: nosso espaço de trabalho fica no quintal da nossa casa e as refeições são rituais que fazem parte dos espetáculos. A criação das dramaturgias ocorre em meio ao caos do dia a dia: não existe pausa nesse processo. O tema do novo trabalho direciona o nosso olhar para a nova dramaturgia, que tem como desafio dar conta de responder as demandas que o assunto toca. Trabalhamos com site specific, intervenção urbana, revelamos os bastidores, construímos camadas sobrepostas/sambaquis e pesquisamos a consciência corporal do performer. O risco faz parte da nossa aventura e as dramaturgias são complexas e desafiadoras como a vida.
VALTER VALVERDE
Cia. Luzes e Lendas
A Dramaturgia do Teatro de Sombras costuma nascer de um vislumbre da dinâmica “luz e sombra” para se contar uma história ou para se apresentar uma idéia. A partir daí, é necessário um estudo do que se quer dizer, com uma pesquisa aprofundada e um roteiro elaborado, que pode, ou não, ser alterado durante os experimentos cênicos. Assim, a narrativa vai-se formando com a movimentação/pausa dos objetos ou figuras – em consonância com a citada dinâmica “luz e sombra” -, e também com o texto (se houver) ou com efeitos sonoros, considerando-se também o tipo e qualidade das fontes de luz. Com a reunião de todos esses elementos, podemos dizer que temos a Dramaturgia de um espetáculo de Teatro de Sombras.
CONCEIÇÃO ROSIÈRE
Dramaturgia é um embate entre forças e personagens, onde a ação se organiza e se desenvolve, até um desfecho. O conflito é a célula básica do drama. Independentemente de escrevemos para atores, bonecos ou sombras, três elementos básicos se interpõem: Logos – a palavra –, o discurso, mesmo que sem texto, que passa uma sensação, uma ideia; Pathos – o drama –, a ação através da qual mostramos o que o personagem faz, deixa de fazer ou sente; e Ethos – a ética –, a moral, o conteúdo, que tem a ver com as crenças, ideias, filosofia de vida, etc. do autor. As cenas devem ser feitas mais para serem sentidas que só vistas: temos que cativar o público, fazer com que ele suspenda a sua descrença para crer na história.